sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Espiritualidade no Século XXI (Continuação)

Espiritualidade e Triunfalismo

Há um novo paradigma na espiritualidade brasileira atual, que é a idéia de que se caminhamos com Deus triunfamos na vida. Essa espiritualidade baseia-se numa teologia influenciada pelos princípios do maniqueísmo, que acredita na existência de duas forças – o Bem e o Mal – que guerreiam para neutralizar um ao outro.

Agostinho foi um dos principais críticos desse movimento, pois segundo ele, os maniqueístas “preferindo crer que Tua substância era passível de sofrer o mal do que a deles ser suscetível de o cometer” . O que separa Agostinho dos Maniqueístas é, entre outras coisas, é o fato do primeiro negar a existência do mal. Para Agostinho o mal é a ausência do bem, não há luta entre um e outro. A afirmação do bem basta, já que o mal é quando deixamos de afirmar o bem. O mal não é uma força em si, mas a ausência dela, diferente para os maniqueístas que acreditavam numa luta constante.

Nesta espiritualidade, pobreza, doença, divórcios, enfim, tudo o que se apresenta como um mal tem que ser vencido pelo bem. A espiritualidade que trato aqui como triunfalismo, recebe esse nome exatamente porque o bem tem que triunfar sobre o mal. O sofrimento, a dor e a pobreza, por exemplo, são antagônicos ao que é o bem e devem ser vencidos. Não são vistos como ausência de um bem. Por exemplo, a doença pode ser vista como ausência de saúde, mas no caso desse pensamento, não. Doenças são vistas como forças do mal que vão contra a vida das pessoas.

Uma outra característica é a ênfase no indivíduo e na igreja. A missão da igreja é arrebanhar almas nessa terra para libertá-las do mal, mas a responsabilidade de libertar-se do mal é do indivíduo. A igreja tem a missão de anunciar a verdade e esclarecer toda a realidade, mas se a pessoa não tiver fé, não há o que ser feito. Assim, é uma espiritualidade sacerdotal e hierarquista, pois a igreja detêm um poder que as pessoas comuns não tem, uma unção para combater o mal neste mundo ao mesmo tempo em que há uma valorização do indivíduo, mais atuante em sua espiritualidade, nessa guerra onde é um soldado a lutar por si mesmo e pela própria libertação, a fim de alcançar felicidade e paz nessa terra, que aqui são entendidas como conseqüência de possuir saúde, prosperidade financeira, casamentos indissolúveis, filhos bem encaminhados, etc. Em suma, enquanto indivíduo, luta-se por si mesmo, mas enquanto parte de uma igreja, luta-se para combater o mal que tenta persegui-la, entenda-se perseguição como o fato de contrariar doutrinas e interesses políticos. Esses interesses políticos são compreendidos como peças-chave para expansão do Reino de Deus, pois garante a manutenção do que favorece esses grupos e pode transformar o que vai contra seus interesses.

Uma Nova Compreensão do Homem

Temos apresentado de forma breve as tentativas de respostas à espiritualidade e como dissemos no princípio, é importante sabermos quem somos nós para encontrar o nosso lugar e o nosso caminho na espiritualidade.

Nossa espécie é conhecida pelos cientistas como homo sapiens, mas essa definição tem se mostrado incompleta e contestada por muitos estudiosos em nossos dias. Trata-se de uma definição que deixa de fora outros aspectos universais no ser humano, como nossa demência, por exemplo. A mesma pessoa que é racional e comedida é capaz de cometer atos dementes. Por isso a lei compreende que todos são assassinos em potencial. Podemos não sê-lo de fato, mas ninguém está livre de ser assassino do outro ou de si mesmo.

O filósofo francês Edgar Morin, afirma que somos homo complexus (sapiens-demens-ludens-mitologicus-poéticus). Somos sapiens porque raciocinamos, somos capazes de pensar sobre nós mesmos, nossa natureza, enfim, racionalizamos a vida; demens; porque é capaz de desmedida e delírio; ludens, porque tem prazer em jogar com a vida; mitologicus, alimentando e alimentado por seus mitos e poeticus, aspirando à poesia da vida, feita de intensidade na participação, na comunhão e no amor que leva ao êxtase.

Essa visão que tem do homem só é possível porque é conseqüência do encontro deste (complexus) com a vida. Enquanto filósofos como Hegel e Marx partiam do princípio da dialética (do Espírito e Materialista), Morin parte do princípio da dialógica. A diferença é que em Hegel e em Marx as contradições encontram uma solução, suprimissem numa unidade superior. Esse é o princípio dialético. Na dialógica, os antagonismos permanecem e formam entidades complexas. Por isso, diz Morin,

"A dialógica é uma arte difícil: o divertimento torna-se irrisório quando nos faz esquecer a tragédia da condição humana e vital quando nos leva a viver poeticamente. Devemos levar a sério a advertência de Pascal quando ele nos diz que nossos jogos, nossas festas, nossos prazeres e nossas ocupações não passam de modalidades diversas para nos distrair do nosso destino mortal. Mas há um duplo divertimento no divertimento. Não se trata apenas de nos distrair da morte, mas também de nos distrair da vida, gozar a vida. O divertimento da vida é gozo e satisfação que nos realizam e nos exaltam."

A arte de viver é uma navegação difícil entre razão e paixão, sabedoria e loucura, prosa e poesia, correndo o risco e petrificar-se na razão ou de naufragar na loucura .

Nesta perspectiva o ser humano e a vida estão em aberto já que ambos são complexos, não podem ser delimitados de forma bruta, incisiva, oprimi-los, mas também não se pode deixar descrevê-los porque tudo que não tem forma lança-se no caos e o caos é a ausência de vida. Essa forma de olhar a vida aproxima-se da espiritualidade vivida por Jesus. A parábola do Bom Samaritano, por exemplo, pode parecer-nos simples em dizer que o samaritano era bom, enquanto o levita e o sacerdote eram pessoas insensíveis, mas essa parábola, contada aos judeus daquele tempo mostrava as contradições da vida, já que a tensão política e religiosa com os samaritanos era grande. Dizer que uma pessoa é boa é uma coisa diferente do que admitir que um inimigo é bom e, além de ser bom, demonstra uma compaixão que os líderes político-religiosos do moribundo não demonstram.

Coragem

O grande problema da dialógica é não apresentar uma delimitação de onde podemos pisar e onde não devemos. Esse problema é também sua riqueza, pois assume as contradições da vida e, por conseqüência, da nossa espiritualidade. Ela é exatamente o oposto do fundamentalismo, pois enquanto esse se tranca em suas crenças doutrinárias da vida e lança fora a chave, a outra está aberta, diante da ausência de respostas, mas nem por isso torna-se hedonista, ou moralmente fraca, antes procura viver primeiramente, não para se proteger da vida, mas imergir e viver dentro dela a sua espiritualidade, assumir os dramas, as dificuldades, as impotências da vida, mas também as alegrias, a comunhão, o amor. Como bem escreveu Tillich “Viver é tentativa” . Quando Jesus, no livro dos Atos dos Apóstolos ascende aos céus, diz aos discípulos: “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês e serão minhas testemunhas”. (At. 1:8). A palavra em grego para poder é dinamin, que é raiz para a palavra em português, dinamismo, dinâmica. Esse poder, longe de ser o que alguns megalomaníacos querem, como autoridade (exousía, quando refere-se a Deus em Atos 1:7) sobre as pessoas e também sobre o poder temporal, tem a ver com a potencialização da vida para viver a espiritualidade que não deve ser vivida pelo medo da vida ou de Deus, estéril, atrás de doutrinas empoeiradas, mas também não é vivida na negação de Deus ou do próximo, nem mesmo de qualquer doutrina, mas a potencialização de afirmar-se na vida, como sujeito a caminhar nela, onde hora pisamos em verdadeiros oásis verdejantes, hora estamos imersos em vales sombrios. Para isso é preciso coragem. Essa coragem de ir adiante na vida, de ser testemunha, de tentar, de participar da existência deste mundo. O medo é o contrário deste poder (dinamin) para viver, ele traz apatia de vida, ausência de poder, de paixão e torna a vida pálida e languida.

A vivência no espírito tem a ver com coragem, com lançar-se e perder-se a fim de encontrar-se, o que não deve ser confundido com antinomismo. Não é a negação de regras ou doutrinas, porque, nesse caso, viver-se-ia como animais, movidos apenas pelo instinto, mas a vida humana não é assim, precisamos de códigos morais que nos socializam e nos dão limites aos instintos. A vivência no espírito é afirmação da vida toda e a vida toda do ser humano inclui sua necessidade moral, mas esta não deve ser castradora.

O Indivíduo e a Comunidade

Precisamos resgatar o princípio individual da espiritualidade. O filósofo cristão dinamarquês, Soren Kierkegaard, em seu livro Temor e Tremor , faz uma análise da história de Abrão que ofereceu seu filho Isaac como sacrifício a Deus. Para o filósofo o estado religioso transcende o ético e, para ser ético, tem que haver algum consenso na coletividade de que matar é errado.

Kierkegaard não está justificando os crimes religiosos com essa análise da narrativa bíblica. O que ele tenta mostrar é que a religiosidade – que chamamos aqui de espiritualidade – é algo implicitamente individual. Não há espiritualidade que seja formada à partir da idéia que temos de sociedade. Numa sociedade há várias leis que regem o que um povo pode ou não pode fazer. Isso existe para garantir uma espécie “contrato” que garanta uma convivência suportável, ou na análise de outros autores, é uma forma de um grupo dominar a coletividade impondo os seus interesses.

De qualquer forma, o que estamos tentando demonstrar aqui é que a espiritualidade é o encontro do indivíduo, dentro do seu mundo com o Sagrado. Jesus sempre lançou sobre o indivíduo a responsabilidade de seus atos. Assim, a lei pode dizer para apedrejarmos a mulher pega em adultério, mas a resposta de Jesus é que “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”. Não é o que dizem para ser feito, mas como você, como indivíduo vai reagir diante desse dilema. Não podemos ser apresentados ao Sagrado por uma agenda moral ou doutrinária, caso isso fosse possível, estaríamos diminuindo-o ao efêmero. Não são as doutrinas e nossos códigos morais que nos apresentam ao sagrado, mas é o encontro com ele que gera em nós essa busca doutrinária e moral. Se não tivermos essa experiência de encontro com ele, não teremos espiritualidade, apenas conhecimento e práxis doutrinária, que é vazia de sentido se não houver esse encontro indivíduo-Deus dentro da história e do tempo.

Onde estaria então a coletividade? Paulo nos fala sobre ela em I Coríntios 11:17-34 quando trata da ceia. Precisamos transcender as nossas diferenças e as nossas experiências sendo unidos num núcleo de amor e acolhimento. Quando Paulo diz que quem come e bebe indignamente come e bebe para a sua própria condenação (v. 29) ele não está dizendo o que muitas vezes nos é aplicado com tom moralista nos púlpitos das igrejas, antes quer falar desse núcleo acolhedor entre os indivíduos daquela comunidade, pois se reuniam havendo muitas divisões (v. 18), uns tinham abundância a ponto de comerem e embebedarem-se em detrimento dos que não tinham o que comer (v. 21) e de não fazerem a ceia em comunhão (v.33), pois nem sequer esperavam pelos outros, mostrando a indiferença que tinham entre si.

Paulo continua a escrever, passando pelos dons espirituais no capítulo 12 e falando sobre a supremacia do amor no capítulo 13. O indivíduo sem o seu próximo está isolado e no isolamento não há comunhão e onde não há comunhão não há possibilidade de amor, de vida, de espiritualidade, pois como entendemos aqui, manifesta-se na vida que se dá no mundo. Por outro lado, o indivíduo suprimido pela coletividade não tem seu encontro com Deus, não tem sua vida potencializada pelo dínamin divino, está aprisionado aos dogmas dos quais se torna prisioneiro, pois estes tem sido verdadeiros ídolos por tomarem um lugar que não é deles, o lugar de Deus na espiritualidade humana.

Conclusão

Cabe-nos agora, num mundo tão particular como o nosso, em meio a tantas experiências possíveis, seja experiência de dor ou de alegria, felicidade ou infelicidade, em toda a nossa complexidade de homo complexus, assumirmos com coragem o nosso encontro com o Sagrado que nos enche de vida, de dinamin e navegarmos pelo mar de nossa existência, entre razão e paixão, liberdade e limites, sem cairmos na licenciosidade cínica dos hedonistas de nosso tempo, mas também de não sermos castrados pela religiosidade vazia de vida e cheia de dogmas e deixarmo-nos ir nesse mar sabendo que não são as respostas às nossas questões, mas o mistério da vida que sopra na vela de nosso barco e nos impulsiona a ir mais adiante nesse oceano da vida, que pode ser belo com mares calmos ou revoltos desde que o nosso pastor esteja conosco.

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Agradecemos ao Prof. Rodrigo pela contribuição nesta coluna!

I Fórum de Pós-Modernidade!