domingo, 1 de maio de 2011

Superação

“Aprendi que não se deve medir o sucesso pela posição que uma pessoa alcançou na vida, mas, pelos obstáculos que ela teve de superar, enquanto tentava ser bem sucedida”
Aos que buscam o sucesso, um recado: sucesso, segundo alguns especialistas, significa, acontecimento, fato, resultado feliz, – isso, se focarmos apenas a posição alcançada pela pessoa. Mas, fazendo uma reflexão mais acurada, percebemos que o verdadeiro sucesso implica em experiência, vivência, visão global e não unilateral de um trajeto; um perfil delineado pelo sabor do conhecimento.

Que mais importa: ter um título; exemplificando: “bacharelado, mestrado”, sem a devida bagagem que compõe esse bloco da trilha acadêmica, ou ter a bagagem essencial dessa formatura e em conseqüência, ser realmente mestre? – é claro, tendo cumprido todas as fazes e requisitos para tal. As facilidades do contexto moderno têm degenerado as qualidades da busca, da caminhada de, A a B, pois os desvios tem afastado aqueles que concorrem ou almejam o sucesso acadêmico.

Uma constatação dessa verdade apóia-se nos noticiários de TV, quando expõem sem desvios, os níveis de vestibulares realizados no país. Os obstáculos contribuem para formação, amadurecimento e fortalecimento daqueles que conseguem superá-los. Superação é a palavra chave, quando temos um alvo e tencionamos alcançá-lo.

Aqueles que não conseguem superar os obstáculos estão fadados ao fracasso, pois lhes falta criatividade na busca de soluções, ante as muralhas de Jericó, usando uma linguagem figurada.
Enfim, “As pessoas vivem culpando as circunstâncias pelo que elas são. Não acredito em circunstância. Vence neste mundo quem sai à procura das circunstâncias de que precisa, e quando não as encontra, as cria”.

Em 1870, nascia um menino em Boon (Alemanha). Um menino que nos legaria um dos mais brilhantes testemunhos de superação. Esse menino, de infância complicada, pois o seu pai era um alcoólatra e segundo os biógrafos, o maltratava sempre.

Começou, ele, a estudar música com muita dificuldade, pois, não descendia de uma família rica. Aos vinte e dois anos perde a sua mãe, único bem, pois, o seu pai era um brutamontes em potencial. Embora seu pai desejasse essa carreira para ele, tinha em si, interesses egoístas, financeiros. Aos trinta anos, uma doença o levou à surdez plena. Nada mais ouvia. Essa etapa dolorosa de sua vida, não o intimidou, embora alguns biógrafos tenham escrito que ele nessa fase, pensara em suicídio.

A surdez que impediria qualquer ser humano de trabalhar com sons, em vez de condená-lo ao silêncio, fez de seus dez últimos anos, os mais revolucionários da história da música.
A nona sinfonia, os últimos quartetos de cordas e as derradeiras sonatas para piano, foram escritos por um homem que jamais as ouviu. E, no entanto, tais obras praticamente ditaram os termos em que se desenvolveria a arte musical dali em diante. Esse homem foi Beethoven.
Que maravilhoso e estupendo exemplo de superação.


Prof. Raimundo Nonato

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Querido prof. Raimundo, obrigada pela belíssima contribuição!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Espiritualidade no Século XXI (Continuação)

Espiritualidade e Triunfalismo

Há um novo paradigma na espiritualidade brasileira atual, que é a idéia de que se caminhamos com Deus triunfamos na vida. Essa espiritualidade baseia-se numa teologia influenciada pelos princípios do maniqueísmo, que acredita na existência de duas forças – o Bem e o Mal – que guerreiam para neutralizar um ao outro.

Agostinho foi um dos principais críticos desse movimento, pois segundo ele, os maniqueístas “preferindo crer que Tua substância era passível de sofrer o mal do que a deles ser suscetível de o cometer” . O que separa Agostinho dos Maniqueístas é, entre outras coisas, é o fato do primeiro negar a existência do mal. Para Agostinho o mal é a ausência do bem, não há luta entre um e outro. A afirmação do bem basta, já que o mal é quando deixamos de afirmar o bem. O mal não é uma força em si, mas a ausência dela, diferente para os maniqueístas que acreditavam numa luta constante.

Nesta espiritualidade, pobreza, doença, divórcios, enfim, tudo o que se apresenta como um mal tem que ser vencido pelo bem. A espiritualidade que trato aqui como triunfalismo, recebe esse nome exatamente porque o bem tem que triunfar sobre o mal. O sofrimento, a dor e a pobreza, por exemplo, são antagônicos ao que é o bem e devem ser vencidos. Não são vistos como ausência de um bem. Por exemplo, a doença pode ser vista como ausência de saúde, mas no caso desse pensamento, não. Doenças são vistas como forças do mal que vão contra a vida das pessoas.

Uma outra característica é a ênfase no indivíduo e na igreja. A missão da igreja é arrebanhar almas nessa terra para libertá-las do mal, mas a responsabilidade de libertar-se do mal é do indivíduo. A igreja tem a missão de anunciar a verdade e esclarecer toda a realidade, mas se a pessoa não tiver fé, não há o que ser feito. Assim, é uma espiritualidade sacerdotal e hierarquista, pois a igreja detêm um poder que as pessoas comuns não tem, uma unção para combater o mal neste mundo ao mesmo tempo em que há uma valorização do indivíduo, mais atuante em sua espiritualidade, nessa guerra onde é um soldado a lutar por si mesmo e pela própria libertação, a fim de alcançar felicidade e paz nessa terra, que aqui são entendidas como conseqüência de possuir saúde, prosperidade financeira, casamentos indissolúveis, filhos bem encaminhados, etc. Em suma, enquanto indivíduo, luta-se por si mesmo, mas enquanto parte de uma igreja, luta-se para combater o mal que tenta persegui-la, entenda-se perseguição como o fato de contrariar doutrinas e interesses políticos. Esses interesses políticos são compreendidos como peças-chave para expansão do Reino de Deus, pois garante a manutenção do que favorece esses grupos e pode transformar o que vai contra seus interesses.

Uma Nova Compreensão do Homem

Temos apresentado de forma breve as tentativas de respostas à espiritualidade e como dissemos no princípio, é importante sabermos quem somos nós para encontrar o nosso lugar e o nosso caminho na espiritualidade.

Nossa espécie é conhecida pelos cientistas como homo sapiens, mas essa definição tem se mostrado incompleta e contestada por muitos estudiosos em nossos dias. Trata-se de uma definição que deixa de fora outros aspectos universais no ser humano, como nossa demência, por exemplo. A mesma pessoa que é racional e comedida é capaz de cometer atos dementes. Por isso a lei compreende que todos são assassinos em potencial. Podemos não sê-lo de fato, mas ninguém está livre de ser assassino do outro ou de si mesmo.

O filósofo francês Edgar Morin, afirma que somos homo complexus (sapiens-demens-ludens-mitologicus-poéticus). Somos sapiens porque raciocinamos, somos capazes de pensar sobre nós mesmos, nossa natureza, enfim, racionalizamos a vida; demens; porque é capaz de desmedida e delírio; ludens, porque tem prazer em jogar com a vida; mitologicus, alimentando e alimentado por seus mitos e poeticus, aspirando à poesia da vida, feita de intensidade na participação, na comunhão e no amor que leva ao êxtase.

Essa visão que tem do homem só é possível porque é conseqüência do encontro deste (complexus) com a vida. Enquanto filósofos como Hegel e Marx partiam do princípio da dialética (do Espírito e Materialista), Morin parte do princípio da dialógica. A diferença é que em Hegel e em Marx as contradições encontram uma solução, suprimissem numa unidade superior. Esse é o princípio dialético. Na dialógica, os antagonismos permanecem e formam entidades complexas. Por isso, diz Morin,

"A dialógica é uma arte difícil: o divertimento torna-se irrisório quando nos faz esquecer a tragédia da condição humana e vital quando nos leva a viver poeticamente. Devemos levar a sério a advertência de Pascal quando ele nos diz que nossos jogos, nossas festas, nossos prazeres e nossas ocupações não passam de modalidades diversas para nos distrair do nosso destino mortal. Mas há um duplo divertimento no divertimento. Não se trata apenas de nos distrair da morte, mas também de nos distrair da vida, gozar a vida. O divertimento da vida é gozo e satisfação que nos realizam e nos exaltam."

A arte de viver é uma navegação difícil entre razão e paixão, sabedoria e loucura, prosa e poesia, correndo o risco e petrificar-se na razão ou de naufragar na loucura .

Nesta perspectiva o ser humano e a vida estão em aberto já que ambos são complexos, não podem ser delimitados de forma bruta, incisiva, oprimi-los, mas também não se pode deixar descrevê-los porque tudo que não tem forma lança-se no caos e o caos é a ausência de vida. Essa forma de olhar a vida aproxima-se da espiritualidade vivida por Jesus. A parábola do Bom Samaritano, por exemplo, pode parecer-nos simples em dizer que o samaritano era bom, enquanto o levita e o sacerdote eram pessoas insensíveis, mas essa parábola, contada aos judeus daquele tempo mostrava as contradições da vida, já que a tensão política e religiosa com os samaritanos era grande. Dizer que uma pessoa é boa é uma coisa diferente do que admitir que um inimigo é bom e, além de ser bom, demonstra uma compaixão que os líderes político-religiosos do moribundo não demonstram.

Coragem

O grande problema da dialógica é não apresentar uma delimitação de onde podemos pisar e onde não devemos. Esse problema é também sua riqueza, pois assume as contradições da vida e, por conseqüência, da nossa espiritualidade. Ela é exatamente o oposto do fundamentalismo, pois enquanto esse se tranca em suas crenças doutrinárias da vida e lança fora a chave, a outra está aberta, diante da ausência de respostas, mas nem por isso torna-se hedonista, ou moralmente fraca, antes procura viver primeiramente, não para se proteger da vida, mas imergir e viver dentro dela a sua espiritualidade, assumir os dramas, as dificuldades, as impotências da vida, mas também as alegrias, a comunhão, o amor. Como bem escreveu Tillich “Viver é tentativa” . Quando Jesus, no livro dos Atos dos Apóstolos ascende aos céus, diz aos discípulos: “Mas receberão poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês e serão minhas testemunhas”. (At. 1:8). A palavra em grego para poder é dinamin, que é raiz para a palavra em português, dinamismo, dinâmica. Esse poder, longe de ser o que alguns megalomaníacos querem, como autoridade (exousía, quando refere-se a Deus em Atos 1:7) sobre as pessoas e também sobre o poder temporal, tem a ver com a potencialização da vida para viver a espiritualidade que não deve ser vivida pelo medo da vida ou de Deus, estéril, atrás de doutrinas empoeiradas, mas também não é vivida na negação de Deus ou do próximo, nem mesmo de qualquer doutrina, mas a potencialização de afirmar-se na vida, como sujeito a caminhar nela, onde hora pisamos em verdadeiros oásis verdejantes, hora estamos imersos em vales sombrios. Para isso é preciso coragem. Essa coragem de ir adiante na vida, de ser testemunha, de tentar, de participar da existência deste mundo. O medo é o contrário deste poder (dinamin) para viver, ele traz apatia de vida, ausência de poder, de paixão e torna a vida pálida e languida.

A vivência no espírito tem a ver com coragem, com lançar-se e perder-se a fim de encontrar-se, o que não deve ser confundido com antinomismo. Não é a negação de regras ou doutrinas, porque, nesse caso, viver-se-ia como animais, movidos apenas pelo instinto, mas a vida humana não é assim, precisamos de códigos morais que nos socializam e nos dão limites aos instintos. A vivência no espírito é afirmação da vida toda e a vida toda do ser humano inclui sua necessidade moral, mas esta não deve ser castradora.

O Indivíduo e a Comunidade

Precisamos resgatar o princípio individual da espiritualidade. O filósofo cristão dinamarquês, Soren Kierkegaard, em seu livro Temor e Tremor , faz uma análise da história de Abrão que ofereceu seu filho Isaac como sacrifício a Deus. Para o filósofo o estado religioso transcende o ético e, para ser ético, tem que haver algum consenso na coletividade de que matar é errado.

Kierkegaard não está justificando os crimes religiosos com essa análise da narrativa bíblica. O que ele tenta mostrar é que a religiosidade – que chamamos aqui de espiritualidade – é algo implicitamente individual. Não há espiritualidade que seja formada à partir da idéia que temos de sociedade. Numa sociedade há várias leis que regem o que um povo pode ou não pode fazer. Isso existe para garantir uma espécie “contrato” que garanta uma convivência suportável, ou na análise de outros autores, é uma forma de um grupo dominar a coletividade impondo os seus interesses.

De qualquer forma, o que estamos tentando demonstrar aqui é que a espiritualidade é o encontro do indivíduo, dentro do seu mundo com o Sagrado. Jesus sempre lançou sobre o indivíduo a responsabilidade de seus atos. Assim, a lei pode dizer para apedrejarmos a mulher pega em adultério, mas a resposta de Jesus é que “quem não tiver pecados que atire a primeira pedra”. Não é o que dizem para ser feito, mas como você, como indivíduo vai reagir diante desse dilema. Não podemos ser apresentados ao Sagrado por uma agenda moral ou doutrinária, caso isso fosse possível, estaríamos diminuindo-o ao efêmero. Não são as doutrinas e nossos códigos morais que nos apresentam ao sagrado, mas é o encontro com ele que gera em nós essa busca doutrinária e moral. Se não tivermos essa experiência de encontro com ele, não teremos espiritualidade, apenas conhecimento e práxis doutrinária, que é vazia de sentido se não houver esse encontro indivíduo-Deus dentro da história e do tempo.

Onde estaria então a coletividade? Paulo nos fala sobre ela em I Coríntios 11:17-34 quando trata da ceia. Precisamos transcender as nossas diferenças e as nossas experiências sendo unidos num núcleo de amor e acolhimento. Quando Paulo diz que quem come e bebe indignamente come e bebe para a sua própria condenação (v. 29) ele não está dizendo o que muitas vezes nos é aplicado com tom moralista nos púlpitos das igrejas, antes quer falar desse núcleo acolhedor entre os indivíduos daquela comunidade, pois se reuniam havendo muitas divisões (v. 18), uns tinham abundância a ponto de comerem e embebedarem-se em detrimento dos que não tinham o que comer (v. 21) e de não fazerem a ceia em comunhão (v.33), pois nem sequer esperavam pelos outros, mostrando a indiferença que tinham entre si.

Paulo continua a escrever, passando pelos dons espirituais no capítulo 12 e falando sobre a supremacia do amor no capítulo 13. O indivíduo sem o seu próximo está isolado e no isolamento não há comunhão e onde não há comunhão não há possibilidade de amor, de vida, de espiritualidade, pois como entendemos aqui, manifesta-se na vida que se dá no mundo. Por outro lado, o indivíduo suprimido pela coletividade não tem seu encontro com Deus, não tem sua vida potencializada pelo dínamin divino, está aprisionado aos dogmas dos quais se torna prisioneiro, pois estes tem sido verdadeiros ídolos por tomarem um lugar que não é deles, o lugar de Deus na espiritualidade humana.

Conclusão

Cabe-nos agora, num mundo tão particular como o nosso, em meio a tantas experiências possíveis, seja experiência de dor ou de alegria, felicidade ou infelicidade, em toda a nossa complexidade de homo complexus, assumirmos com coragem o nosso encontro com o Sagrado que nos enche de vida, de dinamin e navegarmos pelo mar de nossa existência, entre razão e paixão, liberdade e limites, sem cairmos na licenciosidade cínica dos hedonistas de nosso tempo, mas também de não sermos castrados pela religiosidade vazia de vida e cheia de dogmas e deixarmo-nos ir nesse mar sabendo que não são as respostas às nossas questões, mas o mistério da vida que sopra na vela de nosso barco e nos impulsiona a ir mais adiante nesse oceano da vida, que pode ser belo com mares calmos ou revoltos desde que o nosso pastor esteja conosco.

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Agradecemos ao Prof. Rodrigo pela contribuição nesta coluna!

I Fórum de Pós-Modernidade!





terça-feira, 14 de setembro de 2010

Espiritualidade no Século XXI

Queridos, estaremos postando um estudo dirigido pelo nosso professor Rodrigo Pinheiro. Atualmente Rodrigo leciona na disciplina de Ética. Formado no Seminário do Sul é Pastor,
Filósofo, Teologo e Mestre!


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Introdução

O tema desse breve artigo pode causar reações diferentes em quem o lê. Isso porque o tema Espiritualidade é ambíguo e, dependendo de onde se parte o pensamento, esse termo Espiritualidade no Século XXI é um erro. Isso porque, para alguns, espiritualidade é a mesma coisa, independentemente do tempo em que estamos. Nesse sentido, a espiritualidade está aí para combater as heresias deste século, tão plural em suas questões e cheio de novidades para a agenda moral.

Partimos do princípio de que espiritualidade é o encontro do Sagrado com o homem em seu mundo num determinado tempo da história. Como tudo que se encontra exige uma postura diante do objeto ou sujeito encontrado, na espiritualidade acontece o mesmo.

O homem encontra-se com Deus dentro de sua existência – e qual é o sentido da existência? –, que está permeada de experiências de prazer e sofrimento, diante de outras pessoas que passam por outras experiências diante do mesmo mundo e da mesma história. Espiritualidade, então, parte de algumas definições básicas: o que é o homem, quem é Deus, o que é o mundo e o que é a história? Responder essas perguntas – ou pelo menos tentar responder – é preparar as bases de nossa espiritualidade para vivenciá-la.

Não vamos, no entanto, aprofundar nenhuma questão aqui. É um artigo breve. Tampouco vamos abordar todos esses parâmetros da espiritualidade, pois esses apresentam novas subdivisões o que tomariam muito mais trabalho e prolongamento.
O que pretendemos aqui é simplesmente definir espiritualidade e suscitar o interesse em pesquisar e debater o tema.

A Antropologia Agostiniana

Agostinho de Hipona (354-430) influenciou profundamente a teologia cristã, inclusive os reformadores. Deus como Summa Essentia – Ser Supremo – é sempre o oposto do ser humano, este depravado desde o pecado de Adão, não pode sequer fazer o bem senão pela graça divina. Para Agostinho, já nascemos com o pecado em nós e não precisamos aprender a pecar porque já estamos encaminhados naturalmente por ele. Em seu livro Confissões ele conta grande parte de sua vida desde a infância e faz observações aguçadas sobre o homem:
Certa vez vi e observei um menino invejoso. Ainda não falava, e já olhava pálido e com rosto amargurado para o irmãozinho colaço. (...) mas se poderá considerar inocência o não suportar que se partilhe a fonte do leite, que mana copiosa e abundante, com quem está necessitado do mesmo socorro, e que sustenta a vida apenas com esse alimento?

Também ele, na infância, tinha roubado peras, não pela necessidade, mas pelo furto em si, pois ele mesmo tinha frutas melhores. No entanto, nas imediações de nossa vinha, havia uma pereira carregada de frutos, que nem pelo aspecto, nem pelo sabor tinham algo de tentador. Alta noite (...) dirigimo-nos ao local, eu e alguns jovens malvados, com o fim de sacudi-la e colher-lhe os frutos. E levamos grande quantidade deles, não para saboreá-los, mas para jogá-los aos porcos, embora comêssemos alguns; nosso deleite era fazer o que nos agradava justamente pelo fato de ser a coisa proibida.

Agostinho é influenciado então pelo neoplatonismo, onde havia a ambigüidade entre alma e corpo, com a diferença de que nesse sistema filosófico, a alma tem sua tendência para o alto enquanto em Agostinho, ela também está contaminada pela sedução deste mundo e pelos sentidos do corpo. Para resgatá-la é necessário que se busque em Deus forças para vencer a carne e acalmar a alma Nele.

A teologia agostiniana é muito forte na igreja em suas várias expressões de espiritualidade. Na verdade, muitos cristãos não sabem que na base de sua confissão está o pensamento de Agostinho, principalmente no círculo evangélico, por se pensar que este autor é um teólogo católico romano, o que é também um desconhecimento da história da igreja.

De qualquer forma, o que vale observar é que em Agostinho encontramos essa base dualista, onde o homem está lutando para se entregar a Deus, pois não precisa se esforçar para o caminho pecaminoso, por onde somos naturalmente guiados.
É claro que sua influência em outros autores, não quer dizer que ele tenha sido seguido em toda a sua estrutura teológica ou mesmo que tenha sido compreendido. Poderíamos citar vários outros, mas basta-nos dizer que em todas as denominações protestantes e evangélicas há influência deste grande pensador, mas é óbvio que ele foi contextualizado, ou em outros casos, deturpado.

É importante dizer que Agostinho não havia criado um sistema que condenasse a beleza ou o prazer em si, mas a intemperança. Mas se ele não condena nem um nem outro, certamente olha sempre com desconfiança para ambos. Essa desconfiança é algo que se perpetua na teologia e que em sua expressão mais profunda gerou o que conhecemos como fundamentalismo.

O fundamentalismo como movimento surgiu no século XIX, mas foi entre 1909 e 1915 que professores de teologia de Princeton publicaram uma coleção de doze títulos com o título Fundamentals. A Testimony of the Truth. Nesses artigos, fica clara a desconfiança com a modernidade, não só tecnológica, mas também filosófica e, principalmente, teológica.

O fundamentalismo é um dualismo, uma forma de olhar unilateralmente a vida com as lentes doutrinárias. Nessa batalha o princípio que gera essa divisão é a desconfiança a tudo que é diferente, novo e prazeroso. A espiritualidade passa a ser baseada na negação dos desejos do corpo, da modernidade e de qualquer elemento que não seja conhecido e vivenciado no passado. A negação desses elementos é a afirmação de uma vida com Deus, ou seja, de uma espiritualidade inclinada às afirmações doutrinárias que já estão estabelecidas. Esse tipo de espiritualidade é mais comumente encontrada nas chamadas igrejas históricas.
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Você não pode perder, fique ligado neste estudo!!
Cenas para o próximo capitulo:Espiritualidade e Triunfalismo

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

PARA ONDE CAMINHA A IGREJA?



Igrejas,
Projetos,
Comunidades,
Dogmas,
Doutrinas,
Tradições,
Costumes,
Pessoas.
O que representam as pessoas?
Prioridade?
Estatística?
Números apenas?
As pessoas têm fé,
Têm família,
Têm estômago.
As pessoas são vítimas de desigualdades.
E a igreja nisso tudo?
Amém?
Sermão, boa música e tudo bem?
Resolve tudo a oração?
Para onde caminha a igreja?
Em que direção vamos?
A igreja somos homens,
Mulheres,
Crianças,
A igreja é esperança.
Evangelho social,
Teologia da libertação,
Pode ser uma boa direção.
O estômago primeiro,
Depois o evangelho,
Ou nada fará sentido.
Que momento é esse do Cristianismo,
Em que ignora-se o socialista “pão e peixe para todos”
E valoriza-se o capitalista
“farinha pouca, meu pirão primeiro”?
E os líderes,
O que fazem, de fato, pelo seu povo,
Pelas suas ovelhas,
Além de negociarem seus votos,
De fecharem acordos,
De se beneficiarem,
Alegando visão e audição apuradas,
Sobrenaturais até?
Estou farto.
Apesar de tudo isso,
Ainda existem líderes
Que a exemplo de Francisco de Assis,
Ainda que sem o extremo do voto de pobreza,
Entendem que suas necessidades,
E apenas elas,
Precisam ser atendidas,
E dispensam o luxo,
E esquecem de si próprios
E vivem pelo seu povo;
Aqueles, que a exemplo de Cristo,
Se dispõem a dar a vida
Por suas ovelhas;
Aqueles, que assim como Luther King
(um norte-americano do bem),
leva seu povo a entender
que as diferenças existem
e devem ser respeitadas
e que as desigualdades, essas sim,
precisam ser exterminadas,
e que "pior que a maldade dos maus
é o silêncio dos bons";
líderes que entendem
que o mais importante
não é a denominação,
mas os princípios universais
de amor ao outro
estabelecidos por Cristo;
que todos fazemos parte de uma teia,
que todos somos gente,
e que, consequentemente, temos falhas.
Gosto de líderes povo,
De líderes gente,
Que embora austeros,
Não são autoritários,
Dos que diferenciam autoridade de autoritarismo,
Dos que dominam a si mesmos.
Gosto de Luther King,
Que embora chamado para o sacerdócio,
Não deixou de lado as lutas sociais do seu povo,
Ou, que embora lutador das causas sociais,
Não renunciou ao sacerdócio;
Gosto de João Paulo II,
Que embora conservador,
Conquistou uma geração de católicos e não-católicos;
Gosto de líderes que mudam,
Que são “metamorfoses ambulantes”,
Que reconhecem quando erram e se desculpam,
Que não negociam a fé,
Nem a sua, nem a dos outros;
Gosto de líderes que falham.


--
Isac M. Moura é professor na disciplina de Português.
Hoje temos 7 livros escritos pelo prof. Isac, o mais recente
foi lançado no Café Literário da Fabama no dia 06/07/10!
(falaremos mais sob seus livros nos próximos post's)

É sempre uma belezura te-lo conosco!

terça-feira, 22 de junho de 2010

Filmes de "Vocação e missão no cinema contemporâneo"


















Cartazes dos filmes, citados no artigo "Vocação e missão no cinema contemporâneo"
do Prof. Gerson Dudus.





































Vocação e Missão no Cinema Contemporâneo

Três filmes contemporâneos me impressionaram fortemente pelo modo como a vocação e a missão foram trabalhadas. Os filmes são Amateur(1994) de Hal Hartley, Anjos Rebeldes(1996) de Gregory Widen e Um Drink no Inferno(1996) de Roberto Rodriguez.

Os personagens dos dois primeiros filmes eram noviços – uma freira e um padre. No Drink, o personagem é um pastor. Todos desistem da vida religiosa, porque o sagrado se revela a eles de maneira inesperada e estranha.

Em Amateur, a freira ouve uma voz que lhe diz que precisaria sair do convento para salvar a vida de uma pessoa no mundo. Ela sai, e para sobreviver começa a escrever contos eróticos. Ela descobre, no decorrer do filme, que precisa salvar da morte a mais famosa atriz de filmes pornô do mundo, perseguida pela Máfia. Numa entrevista sobre o filme a atriz Isabelle Huppert que faz o papel da freira diz o seguinte:

“Muitas coisas aconteceram neste filme. Eu o chamo de thriller metafísico.(…) Pensando em meu personagem, Isabelle, ela é uma personagem muito idealista. Ela pensa ter uma missão e ela espera muito das pessoas. É como se ela estivesse sendo acordada para a vida, sabe, como se ele estivesse descobrindo a vida. Quando descobre o amor e os homens, e as pessoas. É como se ela tivesse que se comprometer. Então, ela começa dos grandes ideais, porque ela pensa que foi chamada(…)Mas, claro, o ponto central é que ela precisa aprender a como se comprometer e como, em certo sentido, ela vai precisar se tornar um ser humano.”
http://www.possiblefilms.com/projects/amateur/index.html


Com o ex-noviço de Anjos Rebeldes é diferente. No momento em que ele está sendo ordenado padre tem uma visão de uma guerra entre anjos e demônios no céu. É tudo tão real e assustador que ele sai gritando da cerimônia e desiste do ministério, se tornando investigador de polícia. Mas seu conhecimento teológico e sua fé são requeridos para resolver crimes estranhos e horríveis que acontecem na cidade, e ele se envolve numa guerra entre as forças espirituais do bem e do mal.

O pastor de Um Drink no Inferno crê ter perdido a fé depois que sua mulher morre num estúpido acidente de carro, onde fica presa nas ferragens. Ele não entende nem aceita isso como ‘a vontade de Deus’. Mas quando é confrontado com um pedaço do inferno na terra – um bar onde as pessoas se transformam em demônios-vampiros – a única salvação para ele e seus filhos é ele, como um ato de fé, abençoar a água e com ela matar os demônios.

Nos três casos, a vocação e a missão são operacionalizadas, se tornam efetivas em contextos bizarros, exatamente onde não esperaríamos encontrar Deus: o mundo da pornografia, da perversão, da violência e do crime.

Talvez o que estes filmes estejam querendo expressar é o desejo por um outro cristianismo, por uma nova figura de vocação cristã. E também da imagem de um Deus que seja, como a ortodoxia afirma, onipresente: Deus que está em todos os lugares – mesmo os menos recomendáveis; um Deus que todos possam encontrar onde quer que se achem.

Parêntese

Num outro filme, Pulp Fiction (1994), ocorre um interessante encontro com Deus, também num ambiente absolutamente improvável.
Dois matadores de aluguel, Vincent Vega e Jules Winnfield estão interrogando três suspeitos de terem roubado droga do traficante para quem eles trabalham. De repente, um quarto suspeito sai de dentro do banheiro, sem que eles esperem, e descarrega uma arma a dois metros deles. Seria impossível errar daquela distância e a queima roupa. Só que as balas passam através dos matadores sem machucá-los e vão se alojar na parede.
Jules interpreta o que aconteceu como intervenção divina e um aviso de Deus e, por isso, abandona a vida de assassino decidindo viver como uma pessoa normal. Vincent, que acha que aquilo não passou de sorte e coincidência, morre assassinado.


JULES
Isso foi intervenção divina.
Você sabe o que é intervenção divina?

VINCENT
Acho que sim. É Deus descendo do céu e fazendo as balas pararem.

JULES
É isso aí mano. É exatamente o que significa!
Deus desceu do céu e parou as balas.

VINCENT
Bom, então vamos cair fora, tá certo?

JULES
Não faz isso! Não fala nesse tom, filho da mãe!
O que aconteceu foi um p* de um milagre!

VINCENT
Se acalma aí,mané. Isso foi uma coisa que aconteceu…

JULES
Tá errado, nada disso, isso não foi apenas uma coisa que aconteceu!

VINCENT
Voce quer continuar essa discussão teológica
no carro, ou prefere terminar na delegacia com os guardas?

JULES
Nós podíamos estar mortos agora mesmo, babaca!
Nós testemunhamos um milagre e eu queria que você admitisse isso!

JULES
“Tem uma passagem que eu memorizei. Ezequiel 25:17:

‘O caminho do homem de bem é cercado por todos os lados pelas iniqüidades dos egoístas e a tirania dos maus. Abençoado aquele que, em nome da caridade e boa-vontade, pastoreia os fracos pelo vale das trevas. Pois é verdadeiramente o guardião de seus irmãos e salvador dos filhos perdidos. E irei cair com grande vingança e ira sobre todos os que tentarem envenenar e destruir meus irmãos. E você saberá que eu sou o Senhor quando minha vingança o abater’.
Venho dizendo essa merda por anos. E se você chegou a ouvir, significa que vai morrer. Nunca parei pra pensar no significado. Achava que fosse uma daquelas coisas que mostram sangue-frio, pra se dizer a um babaca antes de encher o rabo dele de balas. Mas eu vi uma m* hoje de manhã que me fez pensar duas vezes. Agora eu estou pensando: isso poderia significar que você é o mau. E eu sou o justo. E o senhor calibre45 aqui é o pastor me protegendo pelo vale das trevas. Ou poderia significar que você é o justo e eu sou o pastor. E é o mundo que é mau e egoísta. Eu gosto dessa versão. Mas não é verdade. A verdade é: você é o fraco. E eu sou a tirania dos maus. Mas estou tentando, cara. Estou tentando DE VERDADE ser um pastor.”


Contextualização

A missão do cristianismo no mundo hoje é imiscuir-se. Se o Cristo dissesse aquela frase hoje, talvez a modificasse para: “Sejam astutos como um vírus”.
Sabe-se que um vírus tem um potencial quase ilimitado de variações e parece enganar sempre aqueles que podem derrotá-lo porque conhecem sua estrutura. Um vírus não tem medo de mudar. Ele sabe que esta é a lei secreta de Deus: a única constante é a mudança.
O vírus utiliza informação genética do organismo que está em contato para suas mutações.

Assim é que o cristianismo contemporâneo precisa se tornar um mutante no encontro com cada cultura, se tornar diferente e outro em cada comunidade e só assim continuar sendo cristianismo.
O cristianismo contemporâneo precisa inventar seu próprio processo de singularização, sua multiplicidade: potencializar seus modos de existência e de expressão para aproveitar toda a riqueza das culturas humanas. Uma espécie de antropofagia oswaldiana: engolir tudo e devolver transubstanciado. Imagine o número enorme de vocações que isto pode disparar, já que não é apenas como sacerdote na instituição – pastor, missionário, padre, freira – que se pode servir. A vida cristã e a ética do sermão da montanha funcionam lá fora, no mundo. Como Lutero afirmava, é o sacerdócio de cada crente que interessa

Esse é um desafio e tanto que mexe com três medos: o primeiro medo é o de que no meio desse processo o cristianismo perca seus referenciais-base e não se reconheça mais (a heresia, o sincretismo); o segundo medo é de que no meio do processo o cristianismo morra e uma religião substitutiva surja de suas cinzas e destroços; e o terceiro é o medo de fracassar no meio do processo e perder tudo que existiu em 2000 anos junto com o que não se conseguiu fazer.

Mas, afinal, estes não são os medos que nos acompanham todo o tempo? O medo psicológico de enlouquecer, o medo ontológico de morrer, o medo existencial de fracassar. Mas se eles nos imobilizassem não seríamos mais do que mortos-vivos fingindo agir e pensar.

Como a vida e Deus valem a pena, é precisa aceitar o desafio e enfrentar o medo. Porque podemos ser exercitados no amor e o perfeito amor lança fora o medo.

Prof. Gerson Dudus
Disciplinas: Filosofia da Religião, Sociologia I e II, Sociologia da Religião e História dos Batistas.